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“Imagino representantes das FARC sentados no Congresso”

JAVIER MORENO 19 JAN 2014
El País 
 
Em ocasiões muito raras, um mandatário dispõe da oportunidade de mudar a história de seu país.
 
Entenda-se bem, mudar a história de seu país de modo que sua obra se inscreva nos anais da arte de governar; melhore de forma substancial o bem-estar de seus conterrâneos; coloque sua pátria em uma senda radicalmente distinta e melhor do que a existente até este momento e, em geral, seja reconhecida como tal de forma unânime por seus pares e pela comunidade internacional.
 
Juan Manuel Santos dispõe neste momento desta oportunidade.
 
O conflito, como se denomina a violência gerada pela guerrilha mais atinga do mundo, ocasionou 220.000 vítimas em diversos graus, segundo relatório recente, envenenou a política e a convivência da Colômbia durante décadas e tem impedido o desenvolvimento econômico e o progresso social do país ao retrair o investimento internacional e frear o acesso ao financiamento necessário para a exploração de seus gigantescos recursos naturais. Apesar do forte ceticismo dos colombianos, Santos iniciou um diálogo de paz com as Farc que, se der certo, proporcionará um gigantesco impulso ao progresso da Colômbia e garantirá a ele mesmo esse lugar na história o qual aspira. Se fracassar, marcará para sempre sua biografia, ainda que durante a longa conversa que tivemos faz duas sextas-feiras na Casa de Nariño, em Bogotá, o presidente tenha argumentado que sua agenda política (criação de empregos, redução da desigualdade, entre outros assuntos) é mais ampla do que as negociações com os guerrilheiros que ocorrem em Havana, Cuba.
 
Ao final da conversa, no entanto, fica difícil não apreciar o grau de audácia de Santos, seguramente o presidente mais anglo-saxão do país mais anglo-saxão da América Latina — com suas casinhas de imitação ao estilo Tudor pespontando certos bairros de Bogotá— cujo gosto pelo pôquer, os livros de história e as biografias de Lincoln, Roosvelt e Churchill resultam em feitos conhecidos; que passou quase dez anos de sua vida em Londres e cujo inglês rebuscado desperta inveja. É por isso que no final da entrevista o pergunto quanto da vida e obra destes santos laicos anglo-saxões, de seu estudo e de sua admiração por eles, serviu de inspiração para imaginar o que pode fazer, e o que a Colômbia pode conseguir.
 
— Muitíssimo, muitíssimo. Eu muitas vezes releio partes que serviram para mim de verdadeira inspiração. E digo: se essas pessoas conseguiram, por que alguém não pode conseguir. É uma fonte de inspiração permanente e eu mesmo me retroalimento desta inspiração.
 
— O senhor conhece muitos governantes que façam o mesmo? Porque eu não.
 
— Eu tampouco.
 
E assim terminou a entrevista.
 
Antes, ao longo de quase uma hora, Santos repassou os riscos que corre com a guerrilha (“hoje sou mais otimista do que era há um ano; com isso acho que te digo meu estado de ânimo, mas sei que o que falta é muito complicado e muito difícil”), suas possibilidades de conseguir ser reeleito nas eleições presidenciais do próximo mês de maio, suas conquistas sociais e suas artimanhas no governo de um país presidencialista cuja fragmentação partidária é lendáriae em que não poucos antecessores viram naufragar seus planos de reforma, fossem estes ambiciosos ou modestos, nas águas pantanosas da política nacional.
 
A NEGOCIAÇÃO
 
É inevitável que as atuais negociações de paz, suas possibilidades de triunfo e suas consequências ocupem a maior parte da conversa, e é a primeira pergunta que faço ao presidente. Desta vez “se avançou sem dúvida nenhuma como nunca antes nas diversas tentativas que foram feitas para negociar a paz com as Farc”, disse Santos, e concordam com ele todos os observadores na Colômbia, ainda que nem todos para parabenizá-lo, disso falaremos depois. A maioria, não obstante, sim o felicita por um pesadelo que dura mais de quarto décadas ter condições razoáveis para acabar —mesmo sem acreditar inteiramente na vontade dos guerrilheiros de renunciar à violência e ao negócio das drogas, do qual obtém os fundos para aquela—.
 
"Tenho a responsabilidade de terminar esta tarefa, [a paz] seria o mais importante neste país em 50 anos."
 
Outros, comandados de forma visível e extremamente agressiva pelo ex-presidente Álvaro Uribe, o acusam de trair a pátria e vender o país aos terroristas. Uribe encabeça uma chapa eleitoral ao Senado e apoia um candidato, Óscar Iván Zuloaga, com o objetivo declarado de pôr fim ao que está acontecendo, uma catástrofe sem paliativos, segundo diz em todas as plataformas, com ênfase especial nos milhares de tweets, “trinos” no espanhol da Colômbia, do ex-presidente. “Uribe trinou hoje…” é uma expressão que se repete nas rádios e nas conversas do país a propósito das furiosas investidas do antigo mandatário.
 
A maioria da população, no entanto, apoia as conversações, ainda que duvide que terminará com êxito, segundo as pesquisas. De tal maneira que existe uma sensação de que ambos os processos se entrelaçam de forma tão íntima que não fica claro se a hipotética reeleição de Santos à Presidência da República depende mais das negociações em Havana ou se as negociações dependem da vitória de Santos na votação, ou as duas coisas ao mesmo tempo, ou nenhuma das duas, digo ao presidente.
 
— Eu diria que nenhuma. Este processo deveria, em teoria, continuar com ou sem Juan Manuel Santos, porque este é um processo não de Juan Manuel Santos, não do meu Governo, é um processo dos colombianos; e eu tenho vendido esta ideia. Este é um processo que todos os colombianos devem se apossar dele porque todos vamos nos beneficiar. Inexoravelmente se vincula o nome de Juan Manuel Santos ao processo porque eu sou o presidente e fui eu que o iniciei, mas eu teria gostado, e gostaria, que não dependesse de uma pessoa, e sim que o processo mesmo continuasse com ou sem Juan Manuel Santos.
 
"Eu fui ministro da Defesa, eu sei fazer a guerra e [se for recusado um acordo] continuaríamos com esta guerra muitíssimos anos."
 
— Isso é o que o senhor gostaria, mas o fato é que agora mesmo…
 
— Sim, isso é uma realidade que tenho que aceitar; e é uma das razões pelas quais me lancei à reeleição; porque tenho a responsabilidade de terminar esta tarefa, de fazer todos os esforços possíveis para terminar esta tarefa, que seria o mais importante que aconteceria neste país nos últimos 50 anos. Sabíamos que não ia ser um processo fácil, não somente porque não estamos negociando com anjos, são nossos inimigos durante 50 anos. [Mas também porque] os inimigos da paz têm feito todo tipo de ações e de propaganda negra para envenenar o processo, isso também tínhamos previsto e estamos mantendo o rumo, fazendo pedagogia e acho que o país entendeu que não podemos perder esta oportunidade.
 
— Acha que o ex-presidente Uribe e sua chapa para o Senado têm alguma possibilidade de bloquear lá o processo de paz?
 
— Não, não acho. Não acho que o povo colombiano cometerá esse erro.
 
— Acha que ainda é possível que haja um acordo antes das eleições?
 
— Não, eu não acho que seja possível. Todos os temas são complexos e a dinâmica do processo nos leva a concluir que seria irreal dizer que vamos terminar todos os temas antes das eleições. O que aspiro é que avancemos, que pelo menos fechemos mais um ou dois temas.
 
"A campanha eleitoral não vai ser somente sobre o processo de paz. Há outros temas que afetam os cidadãos."
 
ADVERTÊNCIA DUPLA
 
Santos anunciou desde o princípio que o povo colombiano teria a oportunidade de se pronunciar nas urnas sobre os eventuais acordos de paz fechados com a guerrilha. Foi uma advertência dupla. À guerrilha, de que não podia aspirar mais do que os colombianos estejam dispostos a aceitar e que o presidente, precisamente por ele, não iria transigircom qualquer solicitação pelo mero sonho de assinar um acordo. E ao ex-presidente Uribe: se os colombianos referendarem com seu voto o acordo, as repreensõesapocalípticas dele se tornarão inócuas ou ridículas, a decisão final não é de Santos, está no conjunto de colombianos. Agora, se o acordo não for fechado antes das eleições, terá que ser submetido a um referendo depois. O que faria o presidente Santos em um segundo mandato em que os colombianos tenham recusado esse acordo de paz?
 
— Pois essa é uma hipótese que eu acredito que seja muito provável. Os colombianos, quando apresentarmos a eles o pacote completo, tenho absoluta certeza que eles vão aceitar e vão apoiar, sob algum sistema de referendamento, que pode ser um referendo ou pode ser outro sistema. Isso será negociado também.
 
— Que outro sistema poderia ser?
 
— Na Constituição há consulta popular, podemos inventar alguma com a contraparte. É simplesmente para que a população colombiana tenha a oportunidade de dizer o que compra ou não compra.
 
— O senhor considera que teria legitimidade suficiente para seguir governando caso perca essa consulta? De Gaulle se foi porque perdeu um referendo sobre a descentralização que…
 
— Eu não contemplo essa possibilidade. Voltaríamos ao passado. Eu fui ministro da Defesa, eu sei fazer a guerra e continuaríamos nesta guerra por mais muitíssimos anos; e o país continuaria avançando como tem avançado em meio ao conflito, e tem avançado muito.
 
— O senhor não se sentiria deslegitimado por uma votação contra os acordos de paz?
 
— Sim, seria um golpe mortal ao processo. E eu acredito que afetaria muito a legitimidade do Governo. Mas não acredito que seja responsável por colocar todos os ovos no mesmo cesto. A campanha não vai ser somente sobre o processo de paz; a campanha vai ser sobre outros temas que os colombianos têm no dia a dia: o tema do emprego, a educação, a saúde, a infraestrutura, os temas que os cidadãos comuns têm diante de si. A eleição vai girar também em torno disto, não somente em torno da paz.
 
— Não foi um pouco ingênuo pensar que bastava um ano? Realizar eleições em meio às negociações talvez não pareça ser o mais adequado.
 
—Eu coloquei o ano simplesmente como uma referência para algo que se tornou inevitável: que a campanha se misturasse com o processo. Mas sabia que chegado o momento, se não terminássemos —e era uma data muito ambiciosa, mas na vida é preciso ser ambicioso, se não, não se chega a lugar algum— pois inevitavelmente se confunde agora a eleição com o processo. O que não é ruim, porque no final o povo colombiano tem que se manifestar sobre assuntos que o interessam e um assunto muito importante é a paz.
 
— Não seria, talvez, razoável suspender temporariamente as negociações durante a campanha eleitoral?
 
— Não vejo porquê. Se estamos negociando em meio ao conflito, que foi uma das condições que nós colocamos, então por que não vamos poder negociar em meio às eleições? Ao contrário. Se temos uma dinâmica de progresso, essa dinâmica deve ser aproveitada. Acredito que nisso estamos de acordo as Farc e o governo.
 
TRANSPARÊNCIA E SEGREDOS
 
"Se estamos negociando em meio ao conflito, por que não vamos negociar durante as eleições?"
 
Um ponto não menor de polêmica em uma sociedade democrática consiste em determinar quanta transparência se pode adotar em negociações cujo curso pode ser afetado de forma notável e ainda descarrilar se os detalhes transcenderem antes do conjunto final. Os usos geralmente aceitos —e existe uma longa tradição em conflitos mundiais que assim seja— exigem o segredo absoluto. Mas isso serve também para que os inimigos do processo —que existem em todos os processos— aproveitem para semear inquietude entre os cidadãos e acusar o governo de traições sem nome, com o que abrem outra frente, desta vez interna, que também põe em risco a negociação. Tudo isso está ocorrendo na Colômbia.
 
— Nós acertamos com as Farc manter em segredo os detalhes das negociações até que não tenhamos o pacote final, e fizemos esse acordo por um motivo muito fácil de entender: cada ponto, analisado individualmente, pode estar sujeito a muitas interpretações e muitas críticas. É como quando um pintor está pintando um quadro e começa com 25 por cento, as pessoas não entendem o que vai pintar e podem dizer ‘que quadro tão desagradável’ ou ‘que quadro tão mal pintado’. O pintor quer vender sua obra quando está toda completa. Nós queremos vender nosso acordo quando estiver todo completo, porque assim se poderá apreciar em sua totalidade. Individualmente pode ser muito mal interpretado.
 
— Porque em alguma dessas partes já acordadas há concessões por parte do Estado que, consideradas individualmente, suscitam rejeição.
 
—Efetivamente. Por exemplo, se alguém pergunta ao povo colombiano: “Você quer que as Farc se convertam em um partido político?”. A maioria diz que não, porque tem em mente as Farc dos últimos 50 anos, que têm cometido todo tipo de atropelo à cidadania e à população do país.
 
Se você lhes pergunta: “Vocês considerariam a possibilidade de que as Farc pudessem fazer política, pudessem chegar ao Congresso?” As pessoas intuitivamente dizem que não, que isso não as agrada. Então, individualmente, isso provoca uma rejeição, mas se se apresenta o pacote completo – e isso temos muito claro – as pessoas dizem: “Sim, esse é o preço da paz, sim.”
 
—O senhor imagina Iván Márquez [um dos líderes guerrilheiros que negociam em Havana] sentado no Congresso?
 
—Imagino representantes das Farc sentados no Congresso. É disso que se trata o processo; que deixem as armas e sigam seus ideais. Ninguém os está obrigando a mudar sua maneira de pensar, mas que lutem por seus ideais sem armas, sem violência, apenas utilizando as vias democráticas.
 
—Não se conhecem os detalhes, mas o senhor, sim, os conhece.
 
—Sim.
 
—Sente-se satisfeito com o que foi alcançado até agora?
 
"Com a guerrilha estamos de acordo em um princípio: Colômbia sem coca."
 
—Sim, eu me sinto satisfeito porque acredito que são acordos que no fundo vão trazer um grande benefício ao país. No caso do desenvolvimento rural, tudo o que se definiu no acordo vai significar um grande impulso a todo o campo boliviano, que é onde está concentrada a pobreza e a desigualdade, para tenha investimentos imensos que teríamos de fazer com ou sem Farc. E no caso da participação política, o que concordamos foi com um aprofundamento de nossa democracia, um fortalecimento de nossa democracia, um refinamento dos processos de participação na democracia. As duas coisas são coisas muito positivas para o futuro do país.
 
A DROGA E SEUS CAMINHOS
 
O outro grande obstáculo é a droga. Que a guerrilha vá abandonar um negócio lucrativo é algo que suscita uma enorme incredulidade, inclusive entre aqueles que desejam ardentemente o acordo. O narcotráfico é precisamente o ponto que se está negociando agora mesmo. Até que nível de detalhe vão chegar os negociadores do Governo? Vão pedir aos guerrilheiros que entreguem de forma precisa as rotas por onde retiram a droga, pela Amazônia, pela Venezuela? Isso é possível?
 
—O que posso dizer é que estamos de acordo com um princípio: Colômbia sem coca. Imagine você o que isso significa. O primeiro produtor de cocaína do mundo durante tantos anos que da noite para o dia possa começar a eliminar essa fonte de todo o tipo de mal, porque é uma fonte de financiamento e é um veneno que causou muitos danos, sobretudo para a Colômbia, mas ao mundo inteiro. Esse para mim é um passo importantíssimo e, se conseguirmos que conjuntamente possamos avançar nessa direção, isso não somente para a Colômbia, para a Espanha, para o mundo inteiro, seria de grande benefício.
 
— Mas, que garantia tem de que o acordo será de fato finalmente eficaz, se não entregam esse tipo de informação, detalhada, técnica, de como levam a droga?
 
–– Eu não posso mencionar detalhes sobre a negociação; o que lhe posso dizer é que vai haver um acordo para o narcotráfico e a produção de cocaína irem desaparecendo na Colômbia.
 
–– No final das negociações vao poder oferecer às vítimas toda a justiça que elas exigem?
 
"No primeiro produtor de cocaína do mundo durante tantos anos esse veneno pode desaparecer."
 
—Creio que a Colômbia foi o país que deu exemplo nestes últimos dois anos de um país que tem pela primeira vez as vítimas como centro da solução do conflito, por isso começamos a compensá-las em meio ao conflito. Vamos terminar estes dois anos reparando o mal a 350.000 vítimas, ou cerca de 350.000 vítimas. Isso é um esforço monumental. Vão ser respeitados os seus direitos à verdade, à justiça, à reparação, à não repetição. É disso que se trata a justiça transicional, mas as vítimas também, e isso felizmente temos percebido, estão conscientes de que também é preciso fazer sacrifícios em matéria de seus direitos para que possamos conseguir a paz. Onde se traça a linha entre justiça e paz? Esse é o cerne do problema e o cerne da negociação da justiça transicional.
 
A AJUDA SECRETA DOS EUA
 
“Às vezes é preciso saber fazer a guerra para lograr a paz”, repetiu Santos em muitas ocasiões em público (e também o faz nesta entrevista), sem que talvez muitos suspeitassem até que ponto a afirmação escondia uma mensagem além do óbvio: como ministro da Defesa de Uribe, Santos dirigiu uma guerra feroz contra a guerrilha, política que deu prosseguimento como presidente. Ninguém tampouco duvidou, nunca, nem por um momento, de que a ajuda dos Estados Unidos nos últimos anos se tornou crucial para encurralar a guerrilha até o ponto de forçá-la a aceitar uma negociação como a que atualmente se desenrola em Cuba.
 
O que permanecia oculto, no entanto, até 22 de dezembro passado era a magnitude dessa ajuda: um programa secreto de bilhões de dólares, que abrange escutas e vigilância eletrônica da Agência Nacional de Segurança (NSA) e que não está incluído no Plano Colômbia, de 9 bilhões, que começou no ano 2000 (e esse, sim, é público). A partir de 2006, o programa secreto forneceu às Forças Armadas colombianas um pequeno artefato que, instalado em uma bomba de gravidade, convencional e de pouca precisão, permite que ela se dirija com surpreendente exatidão até o alvo previamente localizado com a tecnologia da NSA.
 
O programa está classificado como secreto e continua em vigor, segundo revelou em uma extensa reportagem The Washington Post. Uma dessas bombas acabou com a vida de Raúl Reyes, um alto chefe das Farc, enquanto dormia em um acampamento no Equador. Outros líderes guerrilheiros também foram eliminados da mesma forma. Para camuflar perante a guerrilha e os observadores militares o uso dessa potente e eficaz arma, o Exército colombiano bombardeava acampamentos guerrilheiros de forma simultânea com outros aviões, que por sua vez lançavam centenas de bombas para esconder que uma só delas, dotada dessa tecnologia de precisão, se dirigia em meio ao fragor diretamente até a cabeça do líder escolhido. Santos, que segundo o jornal norte-americano foi essencial para o desenvolvimento desse programa e o seu uso contra a guerrilha, declinou comentar detalhes com a jornalista do Post que publicou a notícia.
 
Depois de conhecer os pormenores da história publicada, não me resta dúvida alguma de que mais de um, dentro e fora das Forças Armadas, terá feito a si mesmo a pergunta inevitável: por que não continuar bombardeando-os até acabar com os principais dirigentes?
 
—Porque aprenderam a defender-se, claro. Já não é tão fácil.
 
—Mas essa tecnologia continua sendo muito potente. Os guerrilheiros estão conscientes de que, se não aceitam um acordo de paz, enfrentarão uma liquidção certa, não nos próximos 50 anos, como o senhor disse certa vez, mas muito antes? Não parece que 50 anos seja o prazo que de verdade o senhor acredite precisar para derrotar a guerrilha…
 
—Não, claro que a guerrilha não estaria na mesa de negociações se acreditasse que pela via das armas pode ganhar. Isso é evidente, já se deram conta de que por essa via não vão conseguir seus objetivos; e essa realidade teve a ajuda dos golpes contundentes que demos nos últimos anos e eu fui responsável por isso porque…
 
Aqui o presidente se detém, faz uma pausa e por um momento (o momento sonhado por qualquer jornalista) parece que se dispõe a desfiar o relato secreto dos recentes e bem-sucedidos golpes na guerrilha. Mas, não. Reflete durante um brevíssimo instante, muda de ideia, ou ao menos assim me parece, talvez eu esteja enganado, e depois continua:
 
—Os golpes na secretaria [a cúpula diretiva, composta por sete membros] das Farc começaram quando eu assumi o Ministério da Defesa. Antes, em 45 anos não tínhamos atingido nunca um membro do secretariado, mas isso tinha de ser feito para poder conseguir o que estamos conseguindo… e às vezes é preciso saber fazer a guerra para lograr a paz.
 
—Tudo isso não teria sido possível sem essa ajuda decisiva dos Estados Unidos.
 
"Haverá um acordo para que o narcotráfico e a produção desapareçam."
 
 —Não apenas a ajuda específica dos Estados Unidos com essa tecnologia. Nós recebemos ajuda de muitos países, em muitas frentes, ajuda que apreciamos, ajuda que tem sido sumamente útil, e hoje podemos dizer que temos as melhores Forças Armadas na nossa história, não somente em suas capacidades humanas, mas também em equipes, com tecnologia.
 
––A Colômbia terá sido, portanto, um dos poucos exemplos no mundo em que os esforços dos Estados Unidos tiveram êxito.
 
 —Sem dúvida. A iniciativa bipartidária da política externa dos Estados Unidos mais bem-sucedida nos últimos 50 anos sem dúvida alguma foi o Plano Colômbia. E se lograrmos a paz, então é fechar com chave de ouro. Talvez por isso seja incompreensível em Washington considerar possíveis os ataques de Uribe a Santos. “Não estamos acostumados a que os ex-presidentes joguem um papel tão explícito, opinando sobre um mandatário em exercício”, declarou a The Washington Post Carl Meacham, que durante dez anos supervisionou a política sobre a América Latina para o Partido Republicano no Comitê de Assuntos Externos do Senado. “Para nós, surpreende muito comprovar a intensidade com que o presidente Uribe se envolve.”
 
GOVERNAR É REFORMAR
 
Chegando neste ponto, poderiam pensar que o presidente da Colômbia se dedica a dirigir as conversações de paz em Havana e a perseguir os guerrilheiros no território colombiano, excluindo todo o restante, 24 horas por dia e sete dias da semana. Mas nem é preciso pisar nas ruas de Bogotá para compreender que isso não é assim. No próprio gabinete do presidente, em que estamos, através das janelas abertas se escutam os gritos e os chamados dos partidários do prefeito da capital, Gustavo Petro. Consigo entender alguns slogans, “pela dignidade da Colômbia” acaba sendo um dos mais repetidos, todos sobrepujados por um estrondo de músicas do que parecem ser enormes sistemas de amplificação.
 
O caso Petro não afeta diretamente o presidente. Mas simboliza muito bem algumas das encruzilhadas da política colombiana, a dificuldade de governar um país com desigualdades tão profundas, no qual planejar programas para uma maioria da sociedade a ser incluída e também para o establishment se torna bastante complicado, dado que a diferença entre ambos é tão abismal.
 
Petro é um ex-guerrilheiro do M-19 que abandonou as armas há 25 anos. Transformou-se em prefeito da capital em 2011, o posto de maior poder ocupado por um líder da esquerda. A má gestão do serviço de coleta de lixo municipal, cujo relato dos detalhes excederia em muito este espaço, prejudicou sua popularidade. Analistas independentes consideram que, em geral, foi um mau prefeito, as classes médias e altas sentem que governou a cidade contra os seus interesses e, finalmente, o procurador-geral, um homem próximo da ultradireita, o inabilitou em dezembro para o exercício de cargos públicos por 15 anos (mas uma decisão judicial da semana passada, dias depois desta entrevista, suspendeu temporariamente essa cassação).
 
A polêmica tem algo de símbolo inquietante para o conjunto da política na Colômbia e os anseios de estabilidade social e progresso econômico de seus cidadãos: há um caso Petro, mas também no ano passado diversos protestos de cafeicultores e transportadores paralizaram parte do país e transtornaram a vida cotidiana de milhões de colombianoa, e as vítimas e os deslocados pela violência se queixam de falta de atenção. Tudo isso delineia um profundo mal-estar social, do qual emerge com nítidos contornos o mapa da desigualdade na Colômbia. Não sei, digo ao presidente, para começar, se parece razoável que um funcionário não eleito possa destituir um prefeito eleito nas urnas sem a mediação de um processo judicial com as garantias de um estado de direito.
 
–– Não parece razoável. Mas é a lei. E a lei tem de ser cumprida.
 
—Suponho que essa seja uma resposta muito colombiana: é inaceitável, mas vai ter de ser assim.
 
"As vítimas são conscientes de que terão que sacrificar direitos para que se possa conseguir a paz."
 
—Essa é a minha resposta.
 
—Essa é uma mensagem ruim para as negociações de paz em Havana? Petro diz: olhem o que acontece quando se aceita a via política, logo vem um funcionário da ultradireita e te destitui. Ou uma coisa nada tem a ver com a outra?
 
—Um nada tem que ver com o outro. Nós estamos negociando em Havana como se não existisse conflito ou terrorismo na Colômbia e estamos combatendo aqui na Colômbia como se não existisse processo de paz.
 
—E as vítimas e os deslocados? Qual é o balanço da lei de vítimas que seu Governo aprovou? Porque, de fato, as cifras em seu conjunto parecem muito impressionantes, mas também há relatos da imensa dificuldade para sua aplicação na prática. Às vezes parece que o Estado colombiano tem imensas dificuldades para levar até o final leis que aprovou, decisões que tomou, impor sua autoridade sobre latifundiários que acham que estão por cima da lei…
 
— Eu entendo a impaciência de muitas vítimas. Mas a lei prevê um prazo de dez anos para isso e levamos apenas um ano e meio. Nem mesmo passaram-se dois anos e o número de vítimas que já demos uma reparação é imenso. A restituição de terras: neste ponto estamos mais atrasados porque tivemos que montar toda uma organização; tivemos, inclusive, que capacitar juízes agrários, que tínhamos esquecido o direito agrário; e somos um país muito legalista, onde os procedimentos são respeitados e isso dificulta as coisas porque os afetados apresentam todo o tipo de recursos. Mas nós vamos avançando; já temos o esquema funcionando, há uns prazos e, por isso, me sinto muito satisfeito com o progresso, embora eu gostaria que se avançasse mais, especialmente na restituição de terras. Em relação a isso vamos pisar no acelerador.
 
— O senhor diz que a Colômbia é um país muito legalista. Quanto isso dificultou ao senhor levar adiante questões como orçamento e seus ambiciosos planos de desenvolvimento? Houve queixas, lembro que do senhor mesmo, de que se produziram atrasos indevidos.
 
— O ritmo de execução do orçamento do governo foi o ritmo mais alto na história recente do país e essa é uma das minhas prioridades em todos os Conselhos de Ministros, como está indo a execução dos programas. Dito isto, sim, há [atrasos]. Acho que fomos longe demais, eu forcei a mão, em meu estatuto anticorrupção ao colocar muitos obstáculos e muitas condições que tornaram difícil muitas vezes que funcionários tomassem decisões. E isso nós temos que corrigir.
 
— Quais foram as causas dos protestos que ao longo do ano passado paralisaram parte do país? A um mal-estar de agricultores e trabalhadores com suas condições de vida, com os preços dos produtos que vendem? Era um mal-estar social legítimo? Também houve quem dissesse que a guerrilha estava por trás.
 
— Aí houve de tudo. Houve protestos legítimos de setores que têm visto os preços de seus produtos, como o caso do café, caírem 70% e viram seus rendimentos reduzirem 70%, e qualquer pessoa que vê que o seu custo de produção é mais elevado do que o preço de venda vai às ruas protestar e isso é totalmente compreensível. Também há manipulações políticas de pessoas que estavam pensando e que continuam pensando nas eleições que serão realizadas daqui a dois meses. Há também fatores ligados à presença de grupos das FARC que estavam estimulando parte desses protestos. Ou seja, havia de tudo. E também é a manifestação, e isso eu disse, de protesto contra o abandono do campo colombiano, não deste governo nem dos últimos governos. Há décadas o campo colombiano está abandonado, entre outras coisas, pela presença do conflito. As pessoas não investem no campo porque há conflito. Então, este é o círculo vicioso que temos que romper. Se não houver conflito, o potencial da Colômbia para se tornar, por exemplo, uma grande despensa de alimentos do mundo – somos um dos poucos países, segundo a FAO, dos sete países com maior potencial para aumentar a produção de alimentos no mundo – e isso eu espero que aconteça.
 
A ARTE DE COMBINAR VONTADES
 
— O presidente do Chile, Sebastián Piñera, me disse na última vez que o vi que na América Latina é mais fácil ser um candidato de esquerda do que de direita. A Colômbia é uma exceção?
 
— Eu diria que na Colômbia é melhor ser um candidato da terceira via, como eu sou. O conceito de direita e esquerda aqui teve tantas mudanças que as pessoas se confundem. Mas simplesmente pela situação social, o que Piñera diz está certo. É mais fácil ser um candidato de esquerda do que de direita.
 
— Mas não aqui na Colômbia.
 
"A guerrilha não estaria na mesa de negociações se acreditasse que pode ganhar pela via das armas."
 
— Na Colômbia, pela violência e pela necessidade de mão firme contra essa violência, a direita teve mais espaço, sem dúvida alguma. Na medida em que isso desaparecer, o pêndulo pode estar girando-se à esquerda.
 
— O senhor havia contribuído para a teoria da terceira via, inclusive publicado livros, mas quando começou a governar só tinha a esquerda na oposição. Agora, a realidade se acomodou à teoria e nestes quatro anos surgiu uma oposição de direita [liderada por Uribe], que montou uma campanha de difamação contra o senhor.
 
— Sem dúvida e eu me sinto muito confortável quando os dois extremos me atacam: a extrema direita e a extrema esquerda. Para mim, é uma injeção de estímulo para continuar indo em frente no que estou fazendo, porque de certa forma é uma reafirmação de que o que estamos fazendo é o correto.
 
— Falando de livros, me contam que Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln, onde Doris Kearns Goodwin relata como Lincoln, depois de vencer, coloca todos os seus adversários no governo, foi uma inspiração para o senhor, que tentou algo parecido.
 
— Copiei Lincoln. Eu me inspirei em Lincoln e quando ganhei as eleições, convidei meus rivais e disse a eles: aqui podemos governar juntos porque posso incorporar em meu programa de governo o que o senhor estava propondo nisto, nisto e nisto.
 
— Rafael Pardo, que foi candidato pelo Partido Liberal Colombiano e hoje é ministro do Trabalho, Germán Vargas Lleras, candidato pelo Partido Mudança Radical, e que ocupou vários ministérios…
 
— Pardo, Vargas Lleras, até os Verdes, no segundo turno, se uniram à Unidade Nacional. E isso foi o que nos permitiu aprovar reformas impensáveis. Essas reformas progressistas, que a gente nunca havia acreditado que seria possível aprová-las no Congresso, foram aprovadas por isso, por essa governabilidade. Se o senhor me pergunta quais elementos nos permitiram obter os resultados que hoje podemos começar a mostrar, é exatamente esse, o de ter governabilidade. Essa governabilidade nos permitiu aprovar essas reformas no Congresso. Fizemos o governo mais reformista em décadas, conseguimos aprovar reformar muito audazes que estão dando resultados sociais como nunca antes, e isso, para mim, é muito satisfatório, porque éramos um dos países mais desiguais de todo o hemisfério, depois do Haiti. Éramos o segundo país mais desigual de toda a América Latina. E isso não está certo. Continuamos sendo um país muito desigual e temos que avançar muito mais. Conseguimos diminuir o desemprego por 40 meses seguidos sem exceção. Acredito que nenhum país do planeta possa dizer isso. Resta-nos ainda um caminho muito longo por percorrer porque ainda temos quase dois milhões de pessoas desempregadas, mas para mim a parte das reformas sociais constitui o legado mais importante.
 
— Visto em retrospectiva, esse também não seria um possível legado, a governabilidade?
 
— Sim, eu diria que esse é um bom exemplo e o mundo inteiro aplaude o que fizemos ao regular essa unidade nacional. Assim se chama, assim batizamos, o Governo de Unidade Nacional, que nos permitiu conseguir isso e espero que essa unidade nacional se mantenha para atingir a paz, que essa unidade nacional seja a que apoie e concretize a paz na Colômbia.
 
— Essa equipe de ex-rivais pode deixar de ser ex e voltar a ser rivais no momento em que o senhor, dentro de uns quatro anos…
 
— Tenha a segurança de que eu, em quatro anos, não terei mais a mínima possibilidade de aspirar [à Presidência], nem quero, e cada um terá sua liberdade de continuar sua vida política pelo caminho que considere mais pertinente. Mas acho que já sobre umas bases de uma democracia muito mais sólida, de uma democracia muito mais real e uma democracia em paz. E assim é mais fácil fazer política.

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